segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

David


David abriu os olhos.
Devia ser por volta das 2 da manhã. A única luz era a da lua, que entrava pela janela do quarto de hotel que alugara para a estadia no Brasil. Seu sobretudo ainda estava pendurado ao lado da cama, a câmera ainda estava á direita do notebook, e Ivan ainda roncava sonoramente na cama ao lado. Tudo estava exatamente como havia deixado...
Exceto pelo anjo que sorria para ele.
Rafael não havia mudado nada desde sua última visita, anos antes. Ainda vestia jeans rasgadas nos joelhos, casaco vermelho simples e tênis que já conheceram dias melhores. Apenas seu boné mudara: em vez da espada alada da marca Hermes, havia uma cruz estilizada da marca Emmanuel. Não havia sinal de vestes brancas ou asas em Rafael, somente um sorriso amigável em seu rosto duro, que tentava conter uma alegria muito maior do que ele mesmo.
Ao ver Rafael, David virou-se instintivamente para Ivan, preocupado se ele enxergaria o celeste também, mas então entendeu que o cameraman não acordaria tão cedo, fosse pelo poder de Rafael, fosse por ter exagerado no jantar, gastando toda a sua energia no banheiro depois e deixando uma fila de hóspedes apertados reclamando na porta.
Ao tentar se virar novamente para Rafael, só teve tempo de ver de relance o relâmpago de casaco vermelho antes de ele acertá-lo com todo o peso de seu corpo. Meio segundo de torpor e David se viu preso no abraço do anjo, que falava uma infinidade de palavras de alegria, de saudade e de ânimo (as quais David poderia entender muito melhor se Rafael afrouxasse o abraço e o deixasse respirar).
Quando o celeste o soltou, David inspirou uma grande golfada de ar frio e finalmente falou, ainda tentando respirar melhor:
– Rafael... o que você faz... aqui?
– Vim falar com você – respondeu, parecendo uma criança enorme no natal –, Ele permitiu que conversássemos frente a frente desta vez.
– Ele? Por que Ele... permitiria depois de tanto... tempo?
– Porque Ele sente saudades de você. Eu também. Ele te quer de volta, David – o nome de David parecia ter um gosto especial que dançava na língua de Rafael –, Ele se cansou de esperar tanto.
Com a respiração normalizada, David deu vazão à ira.
– Então por que Ele não desceu para falar comigo cara a cara? Por que mandar você em vez de tratar direto comigo? Por que Deus se esconde de mim desse jeito?
O sorriso de Rafael murchou, dando lugar a uma expressão mais séria e um pouco triste.
– Porque você não o aceitaria. E Deus não precisa se esconder de você. Você escolheu não falar com Ele todos esses anos, mas estávamos sempre com você.
– Eu fiquei no escuro durante todo esse tempo e ninguém se dignou a me dizer uma só palavra.
Rafael agora parecia estar tentando explicar uma conta simples para um aluno do primário que não entendia nada:
– Você não viu nada? Todas as vezes que alguém te dava uma mensagem de ânimo, ou quando você via algo escrito pela rua, você jura que não entendia nada? Éramos nós, David! Tentávamos falar com você de uma maneira que entendesse, éramos nós através deles, te dizendo para voltar ao amor que você conheceu em nós, para vencer seu passado e seguir em frente numa caminhada conosco! Como você diz que Deus não fala com você, se Ele fala com todos?
A breve expressão confusa de David transformou-se numa fúria muito maior. Levantou-se, olhos fixos em Rafael.
– Não venha fingir pra mim que vocês se importam mesmo com alguém daqui de baixo. Tem idéia do que tive que passar desde que vocês sumiram? Se há alguém lá em cima que me ama, onde está a merda da proteção? Por que não me pouparam de tanto mal?
– Você acha que é tão simples? Que era só você estalar os dedos que eu pousaria no seu ombro? Nunca te prometemos uma vida fácil. Não é por falar com o Céu, coisa que você não faz mais, que você ficaria livre dos problemas da Terra. Enquanto você reclamava da vida, eu estava no meio de uma guerra. David – deu um passo a frente, ficando cara a cara com ele, e tocou a cruz em seu boné –, jamais duvide de até aonde nós vamos para proteger você.
Ao ouvi-lo falando de proteção, uma cena de anos antes regressou a sua mente. David havia confessado a Rafael, numa madrugada fria como aquela, que não se sentia seguro por medo dos demônios. O anjo lhe respondera que revelaria sua verdadeira aparência a David para que ele passasse a confiar nele e no Deus que o havia designado para estar ali. Afastara-se, então, e uma luz vinda sabe-se lá de onde enchera o quarto com tal intensidade que David pensara estar dentro do sol. Pusera o braço à frente dos olhos imediatamente e sentira que aquela luz aniquilara toda e qualquer escuridão que houvera no quarto na fração de segundo anterior. Procurara enxergar os objetos do quarto à sua volta, e vira que eles de alguma forma respondiam à luz; suas cores estavam muito mais vivas, muito mais reais, e davam a impressão de quererem ultrapassar os próprios objetos a que pertenciam. Se houvera algum som na ocasião, já não sabia dizer.
À deriva naquela inundação de luz e cor, abaixou o braço para tentar enxergar Rafael, mas não foi o amigo que viu. Em seu lugar estava um ser à semelhança de um homem enorme, com uma armadura que não era de nenhum metal encontrado na Terra. Possuía uma grande espada presa à coxa, cujo botão tinha a forma de uma pirâmide de 3 faces cuja base era um globo. Desdobrando-se de suas costas, surgiram 4 asas gigantescas e
fortes que, contra toda noção de espaço, estendiam-se tranquilamente pelo quarto, que conseguia contê-las. Era difícil ver o rosto do ser em meio à luz, porém discerniam-se alguns traços duros, encimados por um elmo com o formato de uma fortaleza quadrada.
O anjo agitara suas asas, soprando uma leve brisa sobre David, porém a própria realidade vibrara com o movimento das asas. Percebera, então, que o anjo era a fonte da luz, e que a parte mais brilhante de tudo era a árvore branca ornamentada na placa de peito do celeste. Não fora ela, contudo, que mais atraíra a visão de David, tampouco fora ela que gelara sua alma e que o deixara noites sem dormir de espanto, mas sim os olhos do anjo. Sim, havia algo nos olhos. Eles eram de todas as cores, e de nenhuma. Havia fogo naqueles olhos, uma energia poderosa demais para ser suportada, era o que tornava os olhos dele tão terríveis. Ao olhar para eles, David de alguma forma soube que vida, morte, luz, trevas, frio, calor e toda a existência encontravam um fim naqueles olhos.
Fora dessa maneira, olhando nos olhos do celeste, que toda resistência física, emocional e espiritual de David fora quebrada naquele instante, e ele caíra no chão, rebentando em choro e escondendo o rosto. Morte, Céu, Inferno, tanto fazia, ele só queria fugir da presença daquele ser terrível. Estar diante dele era insuportável. Gritara, então, para que Rafael o ajudasse, e gritara por Deus, pedindo para que não fosse destruído. Na mesma hora, ainda de olhos fechados, David sentira a luz ir embora com a mesma rapidez com que viera, ouvira o baque surdo de algo caindo ao chão e sentira uma mão em seu braço. Com receio e se recuperando do terror que o dominara, David levantara os olhos só para dar de cara com o sorriso amigável do esfarrapado Rafael, ajoelhado à sua frente.
“Percebe?”, sussurrara, “Quando os demônios vierem, não é você que vai sentir medo”.
A lembrança da visão do anjo guerreiro fez com que David baixasse a guarda. Rafael aproveitou seu silêncio para dizer:
– Você não percebeu, mas te poupamos de muita coisa. Nunca saímos do seu lado, mesmo você guardando mágoa de nós. Deixamos a sua raiva assentar durante os últimos anos, e agora estamos te chamando de volta, como fazemos a muito tempo de uma forma menos direta. Deixe o ressentimento de lado por um momento e tente lembrar-se do que você tinha junto a Deus. Você era alegre, sabia qual era seu propósito na vida, coisa que muitos humanos morrem sem saber. Você tinha amor, tinha uma vida que valia a pena, tinha promessas acima da média...
– E tinha uma namorada – disse David. Até aquele momento mantivera o silêncio, sabendo que Rafael falava a verdade. Mas ao ouvi-lo falando daqueles tempos, era impossível não pensar em Rachel, e assim toda a raiva voltou – Ela não merecia o que aconteceu a ela. Onde estavam vocês naquela hora?
Rafael ficou visivelmente triste ao ouvir falar da ex-namorada de David, mas não era uma dor de arrependimento como este último esperava, e sim uma dor solidária, como se o anjo estivesse tentando tomar as dores do humano.
– Rachel também teve uma chance. Ela podia ter escapado com vida, mas a verdade é que ela nunca realmente escolheu Deus como você, por isso não havia garantias de...
– “Não havia garantias?!” – a ira e o tom de voz David subiram, ao passo que seus músculos se retesaram, como se estivesse prestes a avançar em Rafael – Estamos falando de uma vida, Rafael! Como Deus permite que uma pessoa boa morra daquela forma? Rachel não fez nada para merecer aquilo.
– David, não nos acuse, fizemos tudo para que aquilo não atingisse proporções maiores. Todas as pessoas foram alertadas, cada uma de um jeito diferente, que não deviam estar lá naquele dia, inclusive você. Muitos morreram, sim, mas sem nossa ajuda teriam sido muitos mais! E mais: a morte de Rachel só foi a mais cruel porque não era ela o alvo dos demônios, era você. Eles não queriam só matar pessoas, eles queriam destruir as vidas dos sobreviventes pouco a pouco, queriam que você vivesse aterrorizado e triste para o resto da vida!
David finalmente explodiu:
– POR QUE NÃO FUI EU NO LUGAR DELA? POR QUE MINHA VIDA VALEU MAIS QUE A DELA? POR QUE EU NÃO PUDE FAZER NADA, PORRA? SEM A RACHEL EU JÁ ME SENTIA MORTO! – as lembranças vieram todas de uma vez, todas as que David reprimia todos os dias, passando como um filme em alta velocidade e se repetindo várias vezes na mesma seqüência: a praia, as casas pegando fogo, o céu da noite totalmente escondido pela fumaça, o cheiro dos corpos queimando, Rachel toda machucada, imóvel no chão de areia, a corrida de David, em estado muito pior que o dela, até o local, a mão do demônio descendo como um raio sobre o rosto de David, fazendo a ferida por cima do olho que nunca sairia, o tombo sem forças na areia, o sorriso inumano do possuído ao olhar para a garota, a boca escancarada sobre a garganta dela, o grito que Rachel nunca deu, o som sufocado de sua voz em resposta à mordida que arrancou sua carne, o suspiro de prazer do demônio com metade do pescoço de Rachel na boca, a enchente de sangue do corpo trêmulo dela e a fuga do monstro por entre as chamas.
Desde aquela noite, David não se voltara mais para o Céu.
A onda de lembranças foi demais para David, e ele caiu de joelhos no chão, chorando. A angústia, a dor, a raiva, a sensação de impotência, a solidão e a mágoa, guardadas por tantos anos, agora se condensavam em água e saíam pelos olhos de David. Em meio às lágrimas, reconheceu os contornos de Rafael ajoelhando-se na sua frente e sentiu-o abraçando-o. De início, recebeu mal o gesto, mas por fim seus músculos se afrouxaram e largou-se aos braços do anjo, que chorava com ele. Podiam ter ficado anos naquela posição que pareceria a mesma coisa para David, mas então os primeiros raios de sol caíram sobre os dois, vindos da janela, e começaram a mudar a cor do céu do azul calmo para o roxo triste, e depois bem devagar para o laranja quente e acolhedor. A essa altura, os soluços de David estavam menos freqüentes e os de Rafael já haviam parado. Finalmente, o anjo disse com uma voz profunda:
– Durante muito tempo, você carregou sozinho um fardo pesado demais, David. Quanta tristeza você já suportou sem dizer uma só palavra a ninguém! Mas agora você não precisa mais. Estamos aqui, David, todos nós. Você vai viver uma vida totalmente nova, uma com propósito, você vai amar e ser amado. Este é o propósito da criação de sua espécie, é para isto que existem, mas sua existência não faz sentido sem a presença de Deus. Aceite-o, e Ele vai te aceitar. Você poderá dividir seu fardo com Ele até o dia em que puder largá-lo, e Ele jamais vai te abandonar. Você quer isso, David? Quer conhecer o Amor como nunca conheceu e começar de novo?
E pela primeira vez em anos, David sentiu que estava fazendo a coisa certa. Assentiu com a cabeça. Rafael sorriu e disse:
– Então bendito seja, meu amigo.
E o abraçou mais uma vez. De repente, David sentiu que mais três pessoas o abraçavam, e aí veio uma onda de calor gentil que aqueceu seu coração, e o fez sentir que tudo estava bem de novo...
David abriu os olhos.

Pietro Liberato Chiacchio

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