Ela entrou na sala com a
expressão séria. Era sempre assim, do tipo de mulher que tem o gênio forte. Vestia-se
bem, respeitosamente, como quem não tolera muita brincadeira. Em contra
partida, sua beleza e aparência jovem e bem cuidada fazia com que muitos
desejassem vê-la mais descontraída, toda a postura madura e elegante
contrastavam com a moça jovem de no máximo 26 anos, magra, e com 1,65 m de
altura. Seus olhos castanhos eram penetrantes, seu cabelo preto era liso e
descia um palmo abaixo dos ombros, o nariz arrebitado, seus lábios naturalmente
pareciam ter sido desenhados por um artista.
Essa era
Milena, uma mulher notável, nunca gostou de perder boas oportunidades, desde
criança era estudiosa e se tornou cedo uma respeitada jornalista, trabalhava em
uma revista americana sobre moda. E em virtude de seu trabalho ela conhecia
muitos países, fez a cobertura de diversos eventos importantes. Tornou-se
notável e independente até encontrar com Paulo, eles eram velhos amigos, na verdade,
um pouco mais que isso. Ele sempre gostou dela e ela dele, mas, isso foi quando
estudaram juntos , quando tinham 13 anos de idade e o relacionamento acabou não
indo para frente, agora ele era engenheiro, mais maduro e com muitas ideias, o
tipo de cara que sabe sempre o que dizer. Sempre que ela estava no Brasil eles
se encontravam e aí café vai, café vem,
cinema, beijinhos e quanto mais o tempo passava mais apaixonados ficavam. O tempo passou e a relação provou ser
verdadeira. Surge então o grande dilema, pois construir uma família podia
atrapalhar sua carreira.
Durante muito tempo ela
rejeitou completamente a ideia, mas um acontecimento bombástico a fez mudar de
ideia, o teste deu positivo, e logo ela seria mãe. Este novo evento colocou
Milena diante de uma nova perspectiva e a ideia de arrumar um emprego no
Brasil, mais sossegado que seu atual emprego, de repente se tornou atraente e
ali estava ela fazendo entrevista em um jornal local do estado de São Paulo.
Afim de uma oportunidade de carreira que não fosse tão agitada.
O diretor do
jornal tentou bancar o durão na frente da menina durona, porém por dentro
estava muito entusiasmado, pois sabia que o nome da repórter Milena em seu
jornal seria melhor que muita publicidade. Ele precisava encaixa-la e acabou
pedindo para que ela escrevesse uma coluna sobre culturas regionais, sabendo
que seu nome traria notoriedade a coluna e um dos primeiros trabalhos era em
uma cidadezinha afastada no interior de Minas Gerais, onde as pessoas contavam
historias sobre chupa cabras e fantasmas.
Na realidade o
tema da reportagem era as lendas que circulavam na região. E havia uma casa na
cidade onde morou um senhor velho e autoritário, sem amigos, morreu sozinho e
suas coisas ficaram na casa. Os parentes nunca se interessaram em buscar os
seus pertences, o fato é que diversas lendas e contos sobre aparições de
fantasmas na casa do espólio circulavam na região, a moça resolveu passar uns
tempos no local a fim de descobrir alguma coisa.
Ao chegar à
cidade todos a receberam bem, mas se mostravam assustados ou fugiam quando ela
falava sobre a casa. Cética como era, resolveu passar uns dias na casa com seu
marido, e nos três primeiros dias nada aconteceu. A cidade era uma monotonia,
alguns rapazes passeavam de motocicletas, as mulheres fofocavam, alguns bêbados
contavam histórias tenebrosas, algumas senhoras contavam histórias mais
tenebrosas ainda, alguns jovens davam risada das histórias, outros diziam
acreditar. As ruas eram de Terra, apenas as avenidas eram asfaltadas, a cidade
possuía muitas igrejas, muitos bares, prédios nem pensar. Ao pegar a estrada
que levava para o norte percorria-se 20 minutos na estrada de terra sem ver
nenhuma casa, pegava-se um desvio tenebroso e irregular, não se podia avançar
de carro, mais 20 minutos andando. E ali estava, a casa do espólio onde Milena
e Paulo se encontravam. Milena redigindo um texto no se notebook totalmente
frustrada, pois sua matéria estava qualquer coisa, menos interessante. Paulo
tomava um café fresco que acabara de preparar e jogava videogame enquanto
tentava consolar sua esposa com algumas piadinhas sem graça.
Paulo
conseguiu um sinal mágico de internet e viu por acidente que havia recebido
alguns e-mails, e descobriu que alguns
operários cometeram erros e haviam dois dutos que precisavam ser reparados com
urgência, e só ele poderia estar à frente desta operação. Milena não quis nem
discutir, deu um beijo e despediu-se do marido. Ficaria sozinha de agora em
diante naquele lugar parado.
Paulo queria
leva-la consigo.
- Você não
pode ficar aqui sozinha.
- Eu sempre
fiquei sozinha, meu querido!
- Agora
estamos esperando um bebê, é diferente Milena.
- Paulo, isso
não significa que eu tenha que ser sua protegida, quero que pare com isso
imediatamente. Se você não for vai perder o emprego e não vai dizer que é por
minha causa. Vai que eu ficarei bem, você sabe.
Milena abriu a
gaveta para que Paulo visse o revolver calibre 22.
- Volto o mais
rápido possível!
- Volta sim.
Ao perceber
que havia ganhado a discussão Milena abaixou a guarda, abraçou Paulo e o casal
se beijou rapidamente. Milena observou seu marido diminuindo na estrada quando
sentiu o vento gelado passar pela varanda da casa. Apesar de suas palavras, a
sensação que Milena sentiu não era nada boa. Não havia nada nem ninguém com
quem pudesse conversar, a casa era bem construída, muito sólida, porém
abandonada, a energia elétrica provinha de uma ligação clandestina, talvez por
isso nunca tenha sido desativada. Havia mofo por onde quer que se olhasse, pó e
moveis velhos. O guarda roupa, a escrivaninha, a mesa, todos antigos. Havia uma
varanda em forma de L que passava da frente da casa para o lado direito, a Casa
era quadrada, de uns cinquenta metros quadrados, uma sala razoavelmente grande,
emendada com a cozinha, um quarto com uma cama de casal e um guarda roupa, e um
banheiro. O piso era de taco e rangia quando a pessoa andava. Uma casa velha e
assustadora, no meio do nada.
Seria melhor
procurar o hotel, porem devido ao horário e ao cansaço Milena resolveu passar
mais uma noite na casa.
A noite chegou
e a luz era fraca, uma moça e um notebook na sala, o barulho do teclado se
destacava mesmo com as músicas tocando razoavelmente altas, e o sons
desconhecidos da natureza pareciam ter entrado num padrão. A não ser pelo
rangido estranho vindo da Varanda.
Um nó se
formou na garganta de Milena, ela instintivamente pegou o revolver na gaveta e
saiu para conferir, deu a volta na casa e não havia nada de anormal. Voltou
para seu notebook. O medo faz você pensar um milhão de coisas que certamente
era só cisma.
De volta a
monotonia do “tec tec” enquanto ouvia um canção da banda Eagles, ela quase
pegou no sono quando de repente um baque a assustou. A porta do quarto se
fechou, ela abriu e sentiu o vento frio vindo da janela. Paulo deve ter
esquecido aberta, ela aproveitou para pegar uma blusa na mala.
A sensação de não estar
sozinha era angustiante demais, tinha a impressão de ver olhos na parede, ela
abriu o guarda roupa e viu o fundo falso, derepente percebeu que haviam
cadernos, e eles poderiam conter informações interessantes sobre o Espólio.
Finalmente algo com que se empolgar e afastar todo esse medo.
Os cadernos
continham números, contas chatas que tentava decifrar, alguns nomes, pareciam
planilhas de contabilidade porcamente começadas e não terminadas. Talvez coisas
legais fossem proibidas na cidade.
Ela recostou
na poltrona velha, e quase pegou no sono quando ouviu mais um barulho estranho,
era um rádio, que ligou sozinho. Outro aperto no peito ao ouvir as palavras:
- Vou te levar para o
inferno. Vou escrever um livro com seu sangue.
Uma música terrível e assustadora no seu computador. Milena não encontrava seu
revolver. A sensação não era mais medo e sim, pânico.
O que fazer nessa
situação? Ao entrar na cozinha e encontrar uma galinha degolada e a frase. “Dia de Matar galinhas” “Não mexa no que não
é seu” era um bilhete na gaveta onde ficavam as facas, ela olhou pela varanda.
A noite e a mata fechada não permitiam que se enxergasse nada e a luz da sua
lanterna produzia um estreito e insuficiente caminho de luz.
Ela não podia
ficar na casa, pois certamente havia algo muito errado, e não havia nada com
que pudesse se defender, não havia sinal de celular e nem para a policia
conseguiu ligar. Não havia outra opção, Milena correu desesperadamente em
direção a estrada negra, havia vegetação de ambos os lados e no meio do pânico
Milena ouviu o latido dos cachorros, dois cães negros apareceram na sua frente,
talvez dobermanns, desta vez ela precisou dar meia volta e correr para casa,
por mais rápido que corresse, a impressão que tinha era que a casa nunca
chegava.
“De onde
vieram esses cães?” Milena pensava e não conseguia deixar de notar a expressão
demoníaca e furiosa nos animais. A mais ou menos cinco metros da varanda,
Milena tropeçou, seu rosto bateu na grama por sorte, porém a lanterna caiu de
sua mão e enquanto tentava se levantar sentiu a mordida na perna, mal podia
enxergar o cachorro puxando sua perna esquerda, sentiu o sangue escorrer pela
perna e se arrastou desesperadamente enquanto o outro cão pulou por cima dela.
Ela segurava o rosto do cão a cima dela e arrastava o outro com as mandíbulas
presas a sua perna, ela percebeu um tijolo solto próximo a escada da varanda e
acertou primeiro a cabeça do cão que estava em cima dela violentamente em
seguida o outro cão também foi atingido na costela e se afastou choramingando,
Milena se levantou com um terceiro tijolo na mão e mancou até a porta, quando
se virou para abrir a porta sentiu outra mordida, desta vez na coxa, o susto a
fez errar a tijolada mas o susto fez o cachorro que já havia levado uma
tijolada na costela se afastar, neste momento Milena entrou novamente na casa.
Não podia mais
controlar a respiração e o soluço, estava sozinha e algo a atormentava. Milena
levou as mãos na barriga como quem quisesse proteger a criança, encostou-se na
parede e abaixou-se chorando e gritando.
- Me deixa ir embora!
A perna não
parava de sangrar e uma poça se formou embaixo dela.
Ela repetia o
pedido paranoicamente, sabendo que não haveria resposta, mas para sua surpresa
alguém respondeu, talvez não o que quisesse ouvir.
- Tarde demais
galinha!
Havia alguém na sala, do
outro lado, pode perceber a vulto da figura, ela acendeu a luz que não passava
de uma lâmpada fraca, era um homem jovem, de sobretudo preto, incrivelmente
magro e pálido, olhos azuis arregalados e irritados, vermelhos, ele estava de
touca e aparentemente era careca ou tinha pouco cabelo, uma figura suja como a
casa.
- Meu Deus! Por
favor me deixa ir embora.
- Eu não sou
Deus, muito pelo contrário. -Disse a figura estranha rindo.
- Quem é você?
O que você quer?
-Eu que te pergunto. O que
você quer?
- Eu só
preciso escrever sobre a casa do Espólio. Juro que não tenho nada aqui, pode
ficar com meu notebook, com dinheiro.
- Casa do
Espólio! A Figura disse arregalando os olhos.
- Muito prazer
galinha, eu sou o Espólio, você está na minha casa.
O pânico foi tão forte que Milena sentiu uma
vertigem, a figura a pegou e a colocou em uma cadeira.
- Que ideia é
essa, galinha? Quem te convidou para entrar na minha casa?
- Eu pensei que não tinha
ninguém, eu vou embora, juro que não falo nada.
Nesse momento
o homem agarrou o pescoço de Milena fortemente fazendo-a tossir.
- Não jure
para mim.
Milena começou
a chorar copiosamente, suas esperanças começavam a desvanecer.
Milena estava confusa, e a figura a sua frente
a fitava estranhamente, ele tremia muito. Ele soltou o pescoço da garota,
sentou-se a sua frente e mostrou a arma calibre 22 nas suas mãos.
Tudo era
estranho, os cachorros latiam fora da casa.
- Você já viu
o demônio, galinha?
Nesse momento Milena não
soube o que responder. Ele repetiu a pergunta. Milena abaixou a cabeça e sentiu
o soco no seu rosto, foi outra pessoa que deu, um homem negro, gordo e gigante.
Sujo como o Espólio, seu sorriso malicioso olhos vermelhos e corpo todo
tatuado.
- Muito
prazer. Disse enquanto dava uma risada alta e assustadora.
Neste momento
Milena começou a implorar, baixinho como quem pedisse a Deus, e na verdade era
isso que ela estava fazendo.
Ela viu o
homem grande segurar um cachimbo na boca e revirar os olhos. Nesse momento se
deu conta do que acontecia na casa. Quando recebeu o soco no rosto viu que o
espolio estremeceu e afastou a mão grande do homem.
- E ai
espólio, vai beber o sangue da galinha ou vai fazer algo melhor antes?
- Ela já está sangrando.
- hummmm galinha ao molho
pardo.
O homem pegou
Milena e a pôs desajeitadamente em cima da mesa. Mas o espólio interviu.
- Tira a mão
dela cara.
-Do que você
está falando.
- Ela é igualzinha
minha mãe.
- Tá com
dozinha? Disse o homem gordo avançando ameaçadoramente para cima do Espólio.
Após a discussão três tiros são disparados. O gordo caiu imediatamente.
Milena estava
em choque, mas percebeu o que aconteceu.
- Você vai me
deixar ir embora? Teve a coragem de perguntar.
Ele não
respondeu, e estava armado.
- Você parece
muito com minha mãe, ela é repórter.
Ao perceber
que o Espólio estava sensibilizado e provavelmente não fosse realmente o
Espólio achou que melhor seria escutar o desabafo.
- Eu também
sou repórter, trabalhei uns anos na Revista Style.
- Tsc. A mesma
que minha mãe trabalha.
Nesse momento
Milena julgou que o homem estivesse delirando, a revista americana pagava um
salário milionário, a mãe dele certamente não trabalhava na revista.
- O nome dela
é Keyla.
Milena não
pode acreditar, esse era o nome de uma das mais respeitadas colunistas da
revista, trabalhava lá a mais de 20 anos e ele a descreveu corretamente,
mostrou no guarda roupa uma coleção de revistas rasgadas que ele colecionava.
- Mas como?
Como você veio parar aqui? -Milena perguntou.
Boa parte da
tensão havia ido embora, agora sentia pena do rapaz, a angústia não era pelo
medo do que iria acontecer, mas da situação deplorável em que o Espólio se
encontrava.
- Eu não me
lembro de tê-la visto, quando eu nasci ela não cuidou de mim, não sei quem é
meu pai, quando era criança tive muitas babas, até que uma delas uma, menina
nova, me ofereceu cocaína, eu tinha 10 anos, Milena. Eu desapareci no mundo
quando tinha 15, ninguém me achou até hoje. Eu estou nessa vida. Essa casa
aqui, no meio do nada, vem muita gente aqui para usar pedra, você não devia ter
vindo pra cá.
Agora o
Espólio chorava, e parecia muito mais racional.
- Quando eu te
vi, lembrei das fotos da minha mãe na revista, lembrei de tudo que eu desejei,
não posso destruir você.
- Você ainda
pode dar a volta rapaz, eu posso te ajudar.
- Não, minha
vida já era, eu não consigo deixar de usar essa pedra.
- Se você
aparecer todos vão te ajudar.
- Os caras vão
me internar, eu tentei aparecer a um tempo, mas a imprensa fez de tudo para
abafar, se pudessem teriam me matado.
- Então eu te
ajudo. Não é justo com ninguém acabar assim.
- Você não
pode salvar o Espólio da morte moça, tarde de mais, a morte já pegou ele.
Ela notou que
ele não a chamou de galinha.
-Pare com
isso, eu posso sim te ajudar você ainda está vivo, aqui na minha frente.
- Não, eu sou
espólio há oito anos, quando descobri que estava com AIDS.
Não havia mais
o que ser dito. Ela notou que a pele incrivelmente pálida e o corpo cadavérico
podia não ser exclusivamente por causa da droga. Milena deixou de ter medo e
passou até ter carinho pelo rapaz, ele salvou sua vida e estava la desabafando.
- Eu ainda
posso providenciar para que seus últimos momentos sejam mais confortáveis ao
menos.
- Você já
providenciou moça. Essa conversa, esse desabafo que eu fiz, eu nunca tive a
oportunidade de fazer, fazia para a foto da minha mãe na revista. Mas conversar
com você foi muito melhor, foi como se eu conversasse com minha mãe. Agora eu
já sei como que é. Eu tenho que te agradecer.
- Você podia
me levar até o hospital.
-Claro.
Eles foram
pela estrada conversando. Agora ela confiava nele e ao chegar lá houve a
despedida.
- Muito
obrigado por tudo moça.
- Eu que te
agradeço, a gente ainda vai se ver.
- Infelizmente
não moça.
O rapaz disse
tirando a pistola calibre 22 do bolso levou a boca e disparou. As pessoas no
hospital viram o que aconteceu e correram para socorrer.
Milena
escreveu a matéria mais bombástica de sua carreira. A mãe do Danilo Rocinni o
nome do Espólio teve a imagem jogada no lixo. E mais que isso. Milena percebeu,
que tinha tomado a decisão correta. Uma carreira promissora, independência,
luxo, salário alto, quanta sujeira está por trás das coisas que atraem a
ganancia do ser humano. Nós temos que trabalhar e construir muitas coisas mas
as vezes esquecemos de amar o nosso próximo, ou mesmo de ensinar nossos filhos
a amar o próximo. Essa sim é a essência da felicidade.
Por Caroline Gomes dos Santos